Um menino pobre caminha invisível pelas ruas das grandes cidades brasileiras. Esse menino, que quase sempre é negro, transita imperceptível pelas calçadas sujas das metrópoles, em que muitas vezes se abriga, expulso de casa pela violência doméstica, esquecido pelo poder público, ignorado pela comunidade, excluído da cidadania. Sem perspectivas e esperança, sem vínculos afetivos e simbólicos com a ordem social, sem pontos de conexão identitária com a cultura dominante, o menino permanece invisível, enquanto perambula pelas esquinas. A invisibilidade pode ser produzida pela indiferença pública à sua presença -que nunca é somente física; é sempre também social- ou pela projeção sobre ele de estigmas, os quais dissolvem os aspectos singulares que o distinguem como pessoa humana. O estigma estampa sobre o corpo discriminado a imagem preconcebida, que corresponde à projeção de quem porta o preconceito, anulando a individualidade de quem é observado.
O menino carrega consigo, pelas ruas da cidade, as dificuldades comuns da adolescência, acrescidas dos dramas da pobreza, no contexto da imensa desigualdade brasileira. Sabemos que a adolescência é uma criação histórico-cultural recente, mas também sabemos como pode ser desafiadora, do ponto de vista psicológico, com seu rosário de ambigüidades, cobranças, promessas e frustrações. Quando sobre o adolescente pobre desce o véu escuro da invisibilidade social, seu corpo físico passa a suportar um espírito esmagado, subtraído das condições que lhe infundiriam autoestima.
Quando um traficante lhe dá uma arma, nosso personagem invisível recebe muito mais do que um instrumento que lhe proporcionará vantagens materiais, ganhos econômicos e acesso ao consumo; o menino recebe um passaporte para a existência social, porque, com a arma, será capaz de produzir em cada um de nós, em cada esquina, um sentimento: o medo, que é negativo, mas é um sentimento. Provocando no outro um sentimento, o menino reconquista presença, visibilidade e existência social. Recorrendo à arma, portanto, o menino invisível restaura as condições mínimas para a edificação da autoestima, do reconhecimento e da construção de uma identidade. Os seres humanos só existimos pela mediação do olhar generoso do outro, que nos reconhece como tais, nos devolvendo nossa imagem ungida de humanidade, isto é, qualificada, valorizada. Através do uso da arma, o menino errante estabelece uma interação, na qual se torna possível sua reconstrução subjetiva, na qual se torna viável o projeto –soi disant estético- de sua autoinvenção. Trata-se de uma dialética perversa, em que o menino afirma seu protagonismo e se estrutura como sujeito, sujeitando-se a um engajamento trágico com uma cadeia de relações e práticas que o condenarão, muito provavelmente, a um desfecho letal, cruel e precoce, antes dos 25 anos. Além disso, sendo o medo um sentimento negativo, sua autoafirmação trará consigo o peso da culpa que corresponde à magnitude dos ressentimentos e juízos críticos sobre o ato violento pelo qual se responsabiliza. Trata-se, portanto, de uma espécie de pacto fáustico, em que o menino troca sua alma, seu futuro, seu destino, por um momento de glória, por uma experiência efêmera de hipertrofia do protagonismo, em que as relações cotidianas de indiferença se invertem: o desdém superior do outro converte-se em subalternidade humilhante, temor e obediência à autoridade armada do menino.
Como se observa, a arma nas mãos de nosso jovem personagem é muito mais que um meio a serviço de estratégias econômicas de sobrevivência. Há uma fome anterior à fome física; mais funda, mais radical e mais exigente que a fome física: a fome de existir, a necessidade imperiosa de ser reconhecido, valorizado, acolhido. Por isso, pelo menos tão importante quanto as vantagens econômicas, na cena da violência, destaca-se a relevância dos benefícios simbólicos, afetivos, psicológicos, intersubjetivos.
Quando o menino tem acesso à arma, frequentemente, no Brasil, tem acesso também ao convívio com grupos de traficantes varejistas de drogas e armas, que se instalam nas vilas, favelas e periferias das cidades. Esse convívio proporciona um segundo benefício valioso para os jovens: a gratificação do pertencimento, a qual é tão mais intensa quão mais coeso for o grupo. Por outro lado, a coesão é diretamente proporcional ao grau de antagonismo vivenciado pelo grupo, em suas relações com os outros grupos com os quais se relacione, coletivamente. Essa é a lógica segmentar que os antropólogos conhecemos, sobretudo a partir das obras de Evans-Pritchard e Lévi-Strauss, e que os sociólogos já haviam codificado, desde Simmel. Por isso, é tão importante para meninos e meninas experimentar as emoções reconfortantes do pertencimento, aderindo a grupos segmentares, os quais tornarão a vivência do pertencimento tão mais forte quão mais violentamente confrontarem os grupos rivais. As gangues do tráfico encenam, com resultados trágicos, as regras inconscientes da vida social, na ausência de alternativas construtivas, capazes de sublimar a violência, simbolizando-a e a transferindo para outras linguagens, como a dos esportes, por exemplo.
Techo extraído do texto de Luiz Eduardo Soares , Ex Secretário e Segurança Pública.
domingo, 28 de junho de 2009
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